Um abade, uma ervilha, a genética
O número lançado esta semana da revista Plant Cell traz uma homenagem especial aos duzentos anos do nascimento de um dos mais importantes cientistas de todos os tempos, o abade Gregor Mendel.
Nascido em uma época em que a educação não era disponível a muitos e para se chegar a ela haviam dois caminhos: ser rico ou a igreja. Não sendo um jovem de uma família abastada o que lhe restou foi seguir o convento e lá dispor de um mínimo de paz para fazer o que gostava: estudar e admirar a natureza.
Depois de algumas decepções e não ter sido o escolhido em alguns exames, no convento de Brun, na atual República Tcheca, se dedicou a cultivar e procurar entender como se dava a reprodução de uma planta extremamente comum e sem o ´charme` de tantas outras cultivadas nos jardins de palácios, praças e parques, a ervilha. Aquele grão que entre nós se associa à latinha de 200 g, uma vez que quase não se vêm ervilha fresca em nossas feiras ou mercados.
Criterioso e disciplinado
Hoje há uma fração da humanidade que iria considerá-lo um devasso por estar tentando entender como se dava a reprodução daquela espécie. Talvez sequer o tivessem deixado, nas horas livres dos afazeres do monastério, andar cruzando plantas de flores branca com flores rosas ou grãos lisos com outras com grãos enrugados. Além de proceder com seus cruzamentos sistematicamente, nosso abade colheu as vagens resultantes, plantou as sementes, que no jargão genético se conhece como F1, plantou essas sementes e viu que as plantas eram uniformes. Se fosse outra pararia por aí.
O nosso Mendel não era qualquer um, voltou a plantar as sementes da F1 e colheu aquilo que se conhece como F2 e ao plantar notou que haviam tipos distintos: flores brancas e flores rosas ou sementes lisas e sementes enrugadas em uma proporção definida demonstrando que ´os fatores`, depois batizados de genes eram de fato que determinava a herança entre os seres vivos.
Nem sempre a vida é como se espera
Documentou os resultados, calculou as proporções e a probabilidade que ocorria os tipos distintos e publicou em 1865 uma monografia informando sobre algo que basicamente não havia sido pensado antes. Mendel contou com a sorte e o azar de viver na mesma época que outros monstros sagrados da biologia a exemplo de Charles Darwin, aquele fez balançar a cerejeira e veio com o absurdo de dizer que todos os seres vivos evoluíram de uma única base biológica e que o homem poderia ser considerado como um parente do macaco.
Ainda hoje há quem duvide embora as evidências comportamentais do ser humano, Homo sapiens, a cada dia não deixe dúvida sobre isto. Inclusive mostrando que há macacos mais humanos de que seus parentes mais evoluídos.
O fato é que, havendo recebido o trabalho de Mendel, Charles Darwin não se deu ao trabalho de ler e, consequentemente não iria saber que naquele modesto registro havia algo que impactaria a humanidade tanto quanto seu livro Origem das Espécies. Após a morte de Darwin, os curadores de sua biblioteca encontraram um exemplar do magnifico trabalho científico do abade, sobre as ervilhas, intacto. Nunca fora aberto.
A redescoberta de suas leis
Passaram-se 35 anos até que três estudiosos em países diferentes e sem conexão alguma um com o outro, em 1900, revisando o que havia sido publicado, conseguiram entender aquilo que havia sido registrado e assim se deu o que se conhece como a ´redescoberta’ das leis de Mendel.
A partir daí a genética foi de tal ordem entendida e usada que já na segunda década do século XX, híbridos de milho estariam sendo comercializados nos Estados Unidos. Demorou-se compreender, mas ao ser feito, sua utilidade foi posta em prática imediatamente.
Hoje nos deparamos com a biologia molecular, a genômica, a correção gênica, também denominada pelo amigo Carlos Bloch como intragenia. Vivemos o Admirável Mundo Novo e a cada dia a realidade se confunde com a ficção. Não é à toa que em menos de um ano, várias empresas e instituições mundiais conseguiram desenvolver, em alguns casos utilizando-se de informações genéticas, uma vacina contra a Covid 19, algo inimaginável há poucos anos atrás.
Sua influência foi longe, Sr. Mendel
E daí, o que tem a ver Mendel com o agronegócio do Semiárido? Tem muito. Provavelmente alguém entre nós já provou uma uva desenvolvida por pesquisadores da Embrapa Uva e Vinho, denominada Vitória. Nunca se viu nada igual e ali se expressa sem dúvida a existência de Deus e sua perfeição. Alguém também que conheça o feijão macassar ou feijão de corda, deve em algum momento, haver cultivado a variedade IPA 206, desenvolvida pelas mãos do pesquisador Paulo Miranda, mas não há também como não se notar a persistência de matérias como as cebolas IPA 10 e IPA 11 permanecerem sendo cultivadas. Que o diga os agricultores de Irecê e arredores que viram materiais bem mais caros serem literalmente descontruídos pelas bactérias e fungos em períodos de chuvas fortes.
E no caso dos animais. É importante se conhecer o que é uma granja de produção de ovos ou frangos e da mudança genética que ocorreu nos plantéis dessas aves, quer de corte ou de postura. Vale também testemunhar a revolução que continua sendo vista com a pecuária, uma vez que o gado Nelore e suas seleções dominam a produção de carne no Brasil, fazendo com que mais de 90% da carne que o brasileiro consome seja dessa raça ou de cruzamentos dela provenientes. Que o diga o gado Girolando ou as diversas raças de caprinos e ovinos.
Obrigado meu caríssimo abade Mendel. Você é um dos benfeitores da humanidade e, onde quer que esteja, anote aí no seu caderno de anotações que o Semiárido do Brasil também agradece ao seu feito. Parabéns e Feliz Aniversário.
Fonte: Jornal do Sertão